A inflamação é um processo fisiológico normal do corpo que se recupera de uma lesão, e o uso de gelo como anti-inflamatório retarda este processo. — Foto: Freepik

 

 

Você provavelmente já ouviu, fez isso ou mesmo foi aconselhado a fazer: após sofrer uma lesão aguda (entorse, pancada forte, tendinite…), deve aplicar gelo na área afetada. Novos protocolos de intervenção, no entanto, desaconselham essa prática como regra geral.

Parece contraintuitivo, pois o uso de gelo (crioterapia) causa uma diminuição na condução nervosa e vasoconstrição local (estreitamento dos vasos sanguíneos), o que alivia a dor no curto prazo e reduz a inflamação e o edema.

Então, por que é melhor não fazer isso? Para descobrir a resposta, vamos primeiro analisar o que é inflamação e se é do nosso interesse agir sobre ela.

Uma reação natural

inflamação é um processo fisiológico normal do corpo que se recupera de uma lesão. Imediatamente após a lesão, os vasos sanguíneos se contraem para evitar a perda de sangue.

Poucos minutos depois que a ferida é tapada, o calibre e a permeabilidade desses vasos aumentam para permitir a entrada de substâncias e células imunes com efeitos inflamatórios. Esse é o momento para os neutrófilos, que são responsáveis pelo “trabalho de limpeza” da lesão.

O aumento da permeabilidade vascular, por sua vez, gera um aumento no volume de fluidos – o meio de transporte de todas essas substâncias – que chega à área. Esse inchaço é conhecido como edema, e responde às necessidades fisiológicas de cura.

Quando o processo inflamatório está em seu auge, o acúmulo de substâncias produz uma série de sinais bioquímicos que iniciam a fase de proliferação ou cicatrização do tecido. Os mesmos processos que geraram a inflamação no estágio anterior agora liberam compostos como as lipoxinas, que têm grande poder anti-inflamatório.

Além disso, de acordo com estudos recentes, os neutrófilos que vieram “limpar” a área mudam seu modo de ação durante essa fase e também têm efeitos anti-inflamatórios e regenerativos.

Em outras palavras, para que todo o processo de cicatrização ocorra corretamente, a inflamação deve seguir seu curso fisiológico.

Mudanças no protocolo

Como esses mecanismos biológicos passaram a ser mais bem compreendidos, as estratégias para lidar com lesões agudas mudaram.

Criado em 1978 pelo médico americano Gabe Mirkin, o protocolo RICE enfatizava a crioterapia. Seu acrônimo significa Rest (repouso), Ice (gelo), Compression (compressão) e Elevation (elevação). Desde a década de 1980, ele foi substituído pelo protocolo PRICE, que acrescentou a proteção (o P) da área.

Mais tarde, em 2012, surgiu o protocolo POLICE. Esse método ainda recomendava o uso ocasional de gelo em fases muito agudas, mas oferecia uma mudança substancial no tratamento desse tipo de lesão. Ele mudou o R de repouso para o OL de Optimal Loading (carga ótima). Ou seja, o paciente deve começar a se movimentar o mais rápido possível, começando com movimentos que não envolvam a lesão e não causem dor.

Essa estratégia de carga ideal e progressiva de atividade demonstrou que a mobilização precoce e a reabilitação funcional são mais eficazes do que a imobilização e o repouso total.

Protocolo atual: “PAZ e AMOR”.

Apesar da aparente eficácia dos métodos acima na redução da dor, as recaídas (recorrência de lesões antigas) são comuns. De fato, as patologias de tendão mais prevalentes são frequentemente causadas por uma falha no processo de cura. É por isso que se costuma dizer que “as entorses nunca se curam totalmente”.

Isso nos leva a 2019, quando os especialistas canadenses Blaise Dubois e Jean-Francois Esculier propuseram seu protocolo PEACE and LOVE (paz e amor). Como principal novidade, ele sugere evitar medicamentos anti-inflamatórios (O “A” no acrônimo significa Avoidance anti-inflammatory – evitar anti-inflamatórios), incluindo aí o uso de gelo.

Essas mudanças na abordagem são uma resposta às evidências científicas. Já explicamos que a vasodilatação é necessária para que todas as substâncias essenciais para a cura cheguem no local da lesão. Presumivelmente, o gelo retardará este processo e modificará as vias ideais de cura.

Por exemplo, uma revisão sistemática de 22 ensaios clínicos publicada em 2004 já alertava que havia poucas evidências de que o gelo e a compressão tivessem algum efeito significativo na recuperação de lesões.

No mesmo ano, o especialista americano Scott F. Nadler declarou:

“Embora as modalidades de tratamento quente e frio diminuam a dor e o espasmo muscular, elas têm efeitos opostos sobre o metabolismo do tecido, o fluxo sanguíneo, a inflamação, o edema e a extensibilidade do tecido conjuntivo”.

Em resumo, tanto o gelo quanto alguns medicamentos anti-inflamatórios modificam o processo inflamatório e promovem processos de recuperação ruim e fibrose. Isso pode levar a um tecido que não se regenera adequadamente e é mais suscetível a novas lesões.

O próprio Mirkin, criador do protocolo RICE, admitiu em 2015 que “o gelo retarda a cicatrização”.

E quanto à dor?

dor nociceptiva (nociception) é a dor que sentimos em resposta a danos nos tecidos. Esse sinal de alarme gera mudanças adaptativas (como limitação de movimento e carga) para permitir a cura adequada.

Portanto, anular a nocicepção com gelo ou medicamentos anti-inflamatórios pode retardar ou piorar a lesão, pois ela não cumpre mais sua função protetora se não tirarmos aquelas horas ou alguns dias de descanso adequado.

Como conselho geral, podemos recomendar que as pessoas afetadas sigam o protocolo PEACE and LOVE e, durante a fase de reparação dos tecidos, consumam alimentos ricos em ômega-3 (EPA e DHA) e suplementem a dieta com vitamina C.

No entanto, se você tiver uma lesão grave, é melhor consultar um médico ou fisioterapeuta, que lhe dará orientações e encaminhará no processo de cura mais adequado.

*Beatriz Carpallo Porcar é fisioterapeuta, docente e pesquisadora dos cursos de Fisioterapia e Enfermagem da Universidade San Jorge. Membro do grupo de pesquisa iPhysio da Universidade San Jorge.

*Paula Cordova Alegre é docente e pesquisadora dos cursos de Fisioterapia e Enfermagem da Universidade San Jorge.

**Este texto foi publicado originalmente no site do The Conversation Brasil.